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Parecer 2012

Índice

Parecer sobre o documento “Metas Curriculares” para o Ensino Básico – Matemática

 

A Sociedade Portuguesa de Investigação em Educação Matemática (SPIEM) recomenda veementemente que o Ministério da Educação e da Ciência (MEC) retire a proposta de Metas Curriculares para o Ensino Básico – Matemática, atualmente em discussão. Esta recomendação resulta de uma análise cuidadosa da referida proposta das metas, cientificamente sustentada pelos resultados da investigação nacional e internacional em educação matemática, da qual se conclui que as metas propostas refletem globalmente uma conceção pobre e redutora do que é a Matemática e do que os alunos devem aprender sobre Matemática. Na realidade, retoma orientações curriculares já ultrapassadas e que estiveram na base do baixo rendimento dos alunos portugueses revelado nas décadas anteriores mas que tem vindo a melhorar consistentemente nos últimos anos. Uma eventual concretização da proposta de metas agora apresentada pelo MEC seria muito grave para o país, pois corresponderia a um retrocesso significativo das aprendizagens matemáticas dos alunos portugueses.

A SPIEM considera que as novas metas propostas são claramente inconsistentes com o Programa de Matemática em vigor, o qual está alinhado com as actuais orientações curriculares para a Matemática escolar dos países com bons níveis de sucesso. Como se especifica mais adiante, o propósito principal de ensino salientado em cada tema do Programa não se traduz nas metas propostas, as quais não valorizam a compreensão matemática (“compreender” ou “compreensão” são palavras que não surgem uma única vez nas metas propostas), nem a progressiva formalização do conhecimento matemático, preferindo assumir a formalização como um dado à partida, mesmo em situações em que isso não faz o menor sentido (por exemplo, o destaque dado à formalização matemática vai ao ponto de se indicar que as representações algorítmicas e/ou formais devem ser usadas para efetuar a divisão inteira de dois números até 10, p. 16, descritor 8.3). Muito do que as metas indicam em cada “subdomínio” de conteúdo é novo face ao Programa – por exemplo, axiomatização das teorias matemáticas, teoria de conjuntos, “conhecer o alfabeto Grego”. Existem, ainda, conteúdos do Programa de Matemática que não estão incluídos nas metas propostas ou que são drasticamente reduzidos, como por exemplo o pensamento algébrico no 1.º ciclo, o processo de investigação estatística, as probabilidades.

A SPIEM salienta que o documento apresentado ignora completamente o que a investigação nacional e internacional tem identificado como relevante em termos da progressão do conhecimento matemático dos alunos nos diversos temas e capacidades matemáticas. De facto, este documento, contrariamente às metas de aprendizagem que existem em vários países, não se baseia nos resultados da investigação em Educação Matemática. Dá-se prioridade às representações formais em detrimento da compreensão, indicam-se formulações complexas (como a definição de plano, de variável estatística ou de axiomática de uma teoria), que dificilmente algum aluno compreende, e indicam-se abordagens iniciais para introduzir conceitos que não se traduzem nos aspetos em que eles se devem ancorar (como seja, assumir a fração como medida como o ponto de partida para compreender o conceito de fração, …).

Globalmente, as metas curriculares propostas constituem-se como um corpo de indicações não articuladas nem fundamentadas, desatualizadas e formuladas com linguagem nem sempre adequada e clara. Não se percebe, por exemplo, (i) como se pode indicar como objetivos gerais “contar até cem”, “descodificar o sistema de numeração” ou “conhecer o alfabeto grego”; (ii) porque é que as metas ignoram um vasto campo de problemas matemáticos, centrando a atenção nos problemas que se resolvem por uma ou mais operação aritmética; (iii) porque é que se destacam definições abstratas e a que dificilmente os alunos podem dar sentido. Apresentamos, de seguida, comentários mais detalhados à proposta de metas curriculares organizados pelos temas matemáticos definidos no Programa de Matemática em vigor no ensino básico.

 

 

Números e operações

O propósito principal de ensino indicado no programa é “desenvolver nos alunos o sentido de número, a compreensão dos números e das operações e a capacidade de cálculo mental e escrito, bem como de utilizar estes conhecimentos e capacidades para resolver problemas em contextos diversos” (p. 13). Contudo, este propósito principal de ensino não se reflete nesta proposta de metas apresentada.

A estimação desaparece completamente e o cálculo mental é praticamente ignorado (a expressão “cálculo mental” não consta das metas propostas e apenas aparecem três formulações com ele relacionadas: “Adicionar mentalmente um número de dois algarismos com um número de um algarismo …” (p. 5), “Adicionar ou subtrair mentalmente 10 e 100 …” (p. 9), “Efetuar mentalmente multiplicações de números com um algarismo com múltiplos de dez …” (p. 16)). Toda a organização das metas propostas está focada na preparação rápida da estruturação do algoritmo standard e da sua utilização em determinado tipo de problemas (só são referidos os problemas de passos, ignorando-se outros tipos de problemas igualmente importantes). Esta opção é completamente desadequada e sabe-se hoje que está na base do insucesso dos alunos em termos do desenvolvimento das suas competências de cálculo, como o têm provado numerosas investigações.

As metas propostas refletem uma valorização de aspetos que têm como consequência diminuir o poder de cálculo dos alunos. Não se percebe, por exemplo, que se indique só a decomposição decimal quando há situações em que outros tipos de decomposição são muito mais eficazes e poderosos ou que se exija que os alunos adicionem, subtraiam e multipliquem dois números naturais cuja soma seja inferior a um milhão utilizando o algoritmo. É muito pouco exigente esta orientação pois os alunos deveriam saber calcular mentalmente, por exemplo, 9998 + 2; 345 + 20; 9998 – 2 ou 25×16.

Vários “descritores” correspondem a uma indicação desadequada, tanto ao nível do que se exige que o aluno saiba, como ao nível do que se propõe para a progressão dos seus conhecimentos. Por exemplo, considerar que um aluno de 1.º ano deve “(…) reconhecer que na representação “10” o algarismo “1” se encontra numa nova posição marcada pela colocação do “0” (p. 4) é focar aspetos demasiado abstratos que um aluno desse ano de escolaridade não pode perceber; mais ainda, tal ênfase não é produtiva do ponto de vista da aprendizagem do conceito em causa. Também a indicação de introduzir os números racionais não negativos pela “medida” (as metas propostas consideram mesmo o subdomínio “medir com frações”) é um exemplo de como se opta por aquilo que nenhum especialista sobre o tema recomenda. Na proposta de metas, existe uma ideia pré-concebida totalmente rebatida pela investigação neste tema: que os conhecimentos dos alunos dos números racionais se desenvolvem de acordo com a formalização matemática dos conceitos subjacentes. Os descritores 7 e 8 que integram o objetivo “Medir com frações” (p. 17) para o 3.º ano são um exemplo dessa ideia pré-concebida. O que se espera que os alunos evidenciem enquanto objetivo de aprendizagem: Que “fixem o segmento de reta”? Que reproduzam oralmente que a reta numérica é a reta suporte de uma semirreta? Tais objetivos são totalmente descabidos para alunos de 8 anos.

O Programa de Matemática em vigor indica como objetivos específicos a compreensão das frações com os significados quociente, parte-todo e operador e ainda a localização e posicionamento de números racionais não negativos na reta numérica, tendo como ponto de partida a resolução de problemas, nomeadamente de partilha equitativa e o uso de modelos de área. Os conhecimentos que os alunos vão desenvolvendo dos números racionais, em particular da representação fracionária, são muito contextualizados, ao contrário do que surge na proposta das Metas onde os “descritores” assentem em formulações muito formais e abstratas, desajustadas do nível de desenvolvimento cognitivo de alunos deste nível de escolaridade.

É de salientar ainda que uma das representações dos números racionais, a percentagem, está praticamente ausente da proposta de metas, quando o Programa e a investigação atual evidenciam a sua importância, em associação com a ideia de que os alunos devem estabelecer conexões entre as várias representações desses números. No 2.º ciclo há uma opção errada de tratar todas as quatro operações com os números racionais no 5.º ano, o que será demasiado exigente para crianças de 10 anos, assim como de introduzir operações com números racionais relativos no 6.º ano. Face aos objetivos já ambiciosos para este ciclo de ensino, a aposta das metas propostas é irrealista, comprometendo as aprendizagens dos alunos.

No que diz respeito ao 3.º ciclo, são também introduzidos novos objetivos relativos aos números reais que não estão presentes no Programa de Matemática. As operações com os números irracionais não fazem parte do programa que apenas sugeria a simplificação de algumas expressões simples com radicais (nem dos programas de outros países). Estas são introduzidas no 7.º ano, quando em programas anteriores, recuando à década de 80, surgiam somente no 9.º ano. Este é mais um dos vários exemplos de integração de objetivos de aprendizagem sem um propósito compreensível e que não têm em conta o nível de desenvolvimento matemático dos alunos.

Ainda no que diz respeito ao objetivo de “Operar com raízes quadradas e cúbicas racionais”, no 7.º ano, a proposta de metas ignora totalmente a tecnologia tão acessível nos nossos dias e que é obrigação da escola preparar os alunos para o seu uso adequado e crítico. Assim, é totalmente anacrónico o objetivo de levar os alunos a construir tabelas de quadrados e cubos perfeitos e de as utilizarem para “determinar as representações decimas de raízes quadradas (respetivamente cúbicas)…” (p. 59). Sem a presença da tecnologia será também pouco interessante referir a representação de números racionais em notação científica que emergirá aos olhos dos alunos como mais um conteúdo a aprender sem grande significado pessoal ou social. O uso de calculadora apenas é referido no subdomínio Trigonometria, o que é manifestamente insuficiente numa sociedade altamente tecnológica como a nossa.

 

 

Geometria

O propósito principal de ensino que é indicado no Programa é “desenvolver nos alunos o sentido espacial, com ênfase na visualização e na compreensão de propriedades de figuras geométricas no plano e no espaço” (p. 20). Mais uma vez, este propósito principal de ensino não se reflete na proposta de metas apresentada. A visualização espacial e a compreensão das propriedades de figuras geométricas estão omissas nesta proposta. De facto, o desenvolvimento da visualização espacial que inclui percecionar o mundo à nossa volta, tridimensional, resume-se, na proposta de metas curriculares, a questões de localização e orientação no espaço centradas na formalização de conceitos específicos, tais como os conceitos de direção e de ângulo. Relativamente à compreensão de propriedades de figuras geométricas no espaço e no plano, um dos objetivos do Programa, as metas curriculares não usam nunca nos descritores o verbo “compreender” e, por isso, existe uma contradição real entre estas e o Programa.

De facto, as metas curriculares propostas correspondem a indicações desadequadas, tanto ao nível do que é exigido que os alunos saibam, como no que respeita à progressão dos seus conhecimentos. Por exemplo, na introdução do tema Geometria e Medida, é referido nas metas curriculares propostas que se comece “pelo reconhecimento visual de objetos e conceitos elementares como pontos, colinearidade de pontos, direções, retas, semirretas e segmentos de reta, paralelismo e perpendicularidade, a partir dos quais se constroem objetos mais complexos como polígonos, circunferências, sólidos ou ângulos” (p. 2). Além de contradizer a indicação metodológica sobre o ensino da Geometria veiculada pelo Programa, contrasta também com orientações metodológicas a nível internacional, que sugerem uma abordagem da Geometria partindo do espaço para o plano e não a partir de conceitos elementares do plano como ponto, reta, semirreta, direções de reta, etc. No que respeita à formalização de alguns conceitos consideram-se desadequados o ano de escolaridade a que respeitam e o modo como essa formalização é apresentada. Por exemplo, a meta GM2.2.1. (p. 12) sobre a identificação de uma semirreta com origem em O contradiz o estipulado pelo Programa e o rigor da definição é excessivo para o 2.º ano de escolaridade.

Relativamente à progressão na aprendizagem considera-se que as metas curriculares propostas não têm em consideração orientações sobre a aprendizagem da Geometria, internacionalmente aceites, tais com os níveis de aprendizagem de Van Hiele. Por exemplo, no 1.º ciclo, os alunos situam-se entre o nível 1, de Informação, e o nível 2, de Análise. Por isso, metas como a meta GM2.2.7. “Identificar e representar losangos e reconhecer o quadrado como caso particular do losango” (p. 12) são necessariamente desadequadas uma vez que situam os alunos no nível 3, o da Ordenação.

 

 

Organização e tratamento de dados

O propósito principal de ensino indicado no Programa de Matemática do ensino básico é “Desenvolver nos alunos a capacidade de compreender e produzir informação estatística, bem como de a utilizar para resolver problemas e tomar decisões informadas e argumentadas, e ainda desenvolver a compreensão da noção de probabilidade.” (p. 59). Contudo, a proposta de metas não reflete este propósito de ensino de forma equilibrada, nem tão pouco vai ao encontro do que ele elege como essencial. Note-se que o Programa de Matemática em vigor assumiu uma aposta forte neste domínio, ampliando a complexidade dos conjuntos de dados a analisar, as medidas de tendência central e de dispersão a usar, as formas de representação de dados a aprender e o trabalho de planeamento, concretização e análise de resultados de estudos estatísticos a realizar, bem como o trabalho com as ideias relacionadas com as probabilidades, colocando-se assim a par com as orientações curriculares internacionais que sublinham a importância da educação estatística dos alunos.

As metas curriculares propostas apontam para uma clara desvalorização deste tema, contrariando a opção assumida pelo Programa. Esta desvalorização é visível desde logo pelo reduzido número de objectivos gerais indicados, mas também pela entrada tardia de muitos tópicos que o Programa aponta para mais cedo (por exemplo, a proposta das metas apenas introduz ideias e conceitos de probabilidades no 9.º ano) e ainda pela perspetiva limitada de muitos dos conceitos relativos ao tema Organização e Tratamento de Dados.

Um reparo essencial vai para a forma como a proposta das metas aborda as ideias estatísticas, ignorando que o seu objectivo fundamental é desenvolver a literacia estatística dos alunos. Na realidade, em vez de valorizar o estudo e interpretação de situações reais e pertinentes, coloca a ênfase na execução de técnicas. No que diz respeito às medidas de tendência central ou de localização, indica definições procedimentais e não concetuais que apenas revelam se os alunos conseguem obter valores sem importar se compreendem a que correspondem tais valores. Por exemplo, as metas propostas apontam para que o aluno identifique “a média aritmética de um conjunto de dados numéricos como o quociente entre a soma dos respetivos valores (repetindo cada parcela um número de vezes igual à frequência absoluta da categoria em causa) e o número de dados” (p. 38), introduzindo assim a média como o resultado da aplicação de um algoritmo complexo e que só é útil no cálculo de uma média ponderada, e não como um valor representativo de um conjunto de dados – de notar que pode até nem ser preciso qualquer algoritmo para a determinação da média. Esta proposta de metas mostra assim ignorar que as principais dificuldades dos alunos em Estatística recaem não na execução de procedimentos, mas sim na interpretação das medidas e no retirar de conclusões sobre as situações em análise – o que constitui, aliás, a essência dos estudos estatísticos.

No que diz respeito aos gráficos, as metas propostas revelam uma total falta de perceção de como os alunos constroem o sentido de gráfico e de uma sequência coerente para a sua aprendizagem. Por exemplo, no que diz respeito ao gráfico de barras, a sua introdução no 2.º ano não é perspetivada como uma evolução do gráfico de pontos, abordagem que a investigação tem revelado como eficaz; sem qualquer fundamento científico, o gráfico de barras aparece a par com o diagrama de Venn ou o diagrama de Carrol. É ainda forçada, despropositada e absolutamente formalizada a alusão ao referencial cartesiano (p. 38) que a proposta de metas associa, sem necessidade ou pertinência, aos gráficos de linha, e que tem como consequência uma entrada completamente artificial no domínio das funções.

Um outro reparo que causa perplexidade tem a ver com a inclusão incompreensível de tópicos de teoria de conjuntos no tema de Organização e Tratamento de Dados. De facto, a teoria de conjuntos nem sequer é referida pelo Programa de Matemática em vigor.

É ainda de notar que as metas propostas contrariam o Programa de Matemática em tudo o que diz respeito às Probabilidades. Na realidade, este propõe que os alunos explorem situações aleatórias que envolvam o conceito de acaso desde o 1.º ciclo, que usem de forma adequada conceitos relacionados com a possibilidade de um determinado acontecimento, e que as experiências aleatórias forneçam contextos adequados para a recolha e análise de dados. No entanto, as metas propostas remetem a abordagem às Probabilidades para o 9.º ano apenas, em formato condensado, e de forma formal, renegando as recomendações da investigação acerca do que os alunos podem e devem aprender neste tema.

Estranha-se ainda que num tema como a Organização e Tratamento de Dados nenhuma referência seja feita ao uso da tecnologia, nem como instrumento de cálculo ou de representação, nem como instrumento para a análise. Recorda-se que a maior parte do contacto que os alunos terão com os conceitos deste tema durante a sua vida serão por intermédio do computador; portanto, a competência de lidar com o software dedicado à organização, tratamento de dados e sua representação é algo fundamental mas que esta proposta de metas despreza.

 

 

Álgebra

O propósito principal de ensino indicado no Programa de Matemática é o seguinte: “Desenvolver nos alunos a linguagem e o pensamento algébricos, bem como a capacidade de interpretar, representar e resolver problemas usando procedimentos algébricos e de utilizar estes conhecimentos e capacidades na exploração e modelação de situações em contextos diversos.” (p. 55). A proposta de metas curriculares não vai ao encontro deste propósito, apresentando características particularmente críticas que comprometem a formação em matemática desejada para os alunos no final da sua educação básica, neste domínio, tal como se apresenta em seguida.

Em primeiro lugar salienta-se a ausência de uma perspetiva de desenvolvimento do pensamento algébrico desde o 1.º ciclo, defendida internacionalmente pela investigação em educação matemática e presente nas revisões curriculares da maioria dos países com níveis elevados de sucesso em Matemática. A proposta de metas curriculares parece partir do pressuposto errado de que a linguagem e procedimentos algébricos são transparentes e que basta apresentá-los aos alunos para que estes os utilizem. É paradigmático de uma visão desajustada de como se desenvolve a aprendizagem da álgebra o facto de o primeiro “descritor” do primeiro objetivo geral do 3.º ciclo (“Multiplicar e dividir números racionais relativos”, p. 50) consistir na prova de uma propriedade relativa à adição de números racionais em linguagem algébrica parecendo assumir que os alunos devem dominar esse tipo de linguagem, no início do 7.º ano.

Na introdução da proposta das metas curriculares, indica-se que se apresenta “uma sequência de objetivos gerais e de descritores, dentro de cada subdomínio, que corresponde a uma progressão de ensino adequada” (p. 1). Contudo, não é de todo percetível como vão os alunos progredir no domínio da álgebra. Por exemplo, a (suposta) utilização da linguagem algébrica surge logo no primeiro subdomínio do 3.º ciclo, bem como a resolução de equações no 7.º ano, mas reconhecer e operar com monómios só surge no 8.º ano, o que indicia uma perspetiva de aprendizagem da manipulação algébrica formal e sem compreensão, por parte do aluno.

De facto, a existência em todo o documento da proposta das metas curriculares de uma visão desadequada sobre a forma como os alunos desenvolvem a capacidade de compreender e utilizar a linguagem simbólica é evidente quando se apresenta, para o 5.º ano, o descritor 11, “Traduzir em linguagem simbólica enunciados matemáticos expressos em linguagem natural e vice-versa, sabendo que o sinal de multiplicação pode ser omitido entre números e letras e entre letras…” (p. 37; Expressões algébricas). É necessário o trabalho direcionado e com sentido numa diversidade de situações para que os alunos passem a usar a linguagem algébrica com compreensão, o que não será o caso no 5.º ano, nos termos apresentados nas metas. O programa de Matemática em vigor defende, aliás, o início de desenvolvimento do pensamento algébrico a partir do 1.º ciclo mas tal perspetiva não está presente na proposta de metas.

Adicionalmente, não existe referência alguma na proposta das metas curriculares em análise à capacidade de o aluno “interpretar e representar situações em contextos diversos, usando linguagem e procedimentos algébricos” ou de “interpretar fórmulas em contextos matemáticos e não matemáticos” (p. 55), objetivos do Programa de Matemática. Ao invés, no enunciado dos objetivos gerais e descritores das metas curriculares predominam verbos como “Definir”; “Designar” e “Identificar” que correspondem a enunciados de objetivos de aprendizagem de nível mais básico que não se coadunam com um propósito mais amplo de compreensão da linguagem e procedimentos algébricos e da sua utilização em contextos diversos.

Salienta-se, em segundo lugar, a predominância de objetivos que se centram em definições e na linguagem formal, sem um propósito definido. Ao contrário do Programa de Matemática que enfatiza a compreensão e interpretação dos conceitos e linguagem algébrica, os objetivos presentes apresentam descritores repletos de definições e designações formais, como é exemplo o subdomínio Funções do 7.º ano. A SPIEM questiona seriamente a inclusão de dez descritores para “Definir funções”, no 7.º ano (onde se inclui, por exemplo, o de “função numérica” (p. 56)), e se desconsidera a compreensão do conceito de função (como relação entre variáveis) e a capacidade de o usar em diversas situações, tal como preconiza o Programa. Não será por decorarem as definições e respetiva terminologia que os alunos vão desenvolver o conceito de função, como a vasta investigação neste tema evidencia. Portanto, o objetivo “Definir funções” é muito redutor relativamente aquilo que o Programa pretende para os alunos, no 3.º ciclo.

Tendo em conta a orientação do Programa de Matemática em vigor que preconiza o trabalho com sequências desde o 2.º ciclo e, em particular, no início do 3.º ciclo para introdução do termo geral da sequência através da linguagem simbólica, é desajustado que nas metas curriculares agora propostas o quarto objetivo “Definir sequências e sucessões” surja somente após “Definir funções”; “Operar com funções” e “Definir funções de proporcionalidade direta”. A SPIEM questiona também aqui, mais uma vez, a formalidade exigida a alunos do 7.º ano, ao distinguir a definição de sequência e sucessão. Qual o seu propósito para a generalidade dos alunos? De realçar, em terceiro lugar, a introdução de novos objetivos para além dos que figuram no Programa em vigor. Sendo que os tópicos relativos à álgebra abrangidos no Programa já são bastante vastos, a introdução de novos tópicos tornará a tarefa de cumprimento de objetivos de aprendizagem muito difícil para os professores e contribuirá para aumentar o insucesso dos alunos. O objetivo “Operar com funções” é um dos novos tópicos introduzidos, não se vislumbrando a sua pertinência. De facto, a SPIEM questiona fortemente a inclusão de descritores relativos a propriedades das operações com funções lineares e afins, tanto mais que é exigido aos alunos que demonstrem e provem (descritores 6 e 7 do 7.º ano) essas propriedades. Também a formalidade exigida nos descritores relativos ao objetivo “Identificar as equações das retas do plano”, no 8.º ano, vai além do que é apontado no Programa de Matemática, por exemplo, ao exigir-se que o aluno venha a “Demonstrar, utilizando o teorema de Tales, que as retas não verticais num dado plano que passam pela origem de um referencial cartesiano nele fixado são os gráficos das funções lineares” (p. 67). Também os dez descritores do subdomínio “Propriedades das funções e respetivos gráficos”, no 9.º ano, pela formalidade com que são apresentados, constituem objetivos de aprendizagem que ultrapassam o que é apresentado no Programa em vigor.

 

Capacidades transversais

A proposta de metas curriculares começa por sublinhar que a resolução de problemas, a comunicação matemática e raciocínio matemático são “indispensáveis ao cumprimento dos objetivos elencados” (p. 1), pelo que, segundo os autores da proposta apresentada, estão contempladas “de forma explícita ou implícita em todos os descritores” (p. 1). A leitura do documento mostra, contudo, que esta situação não corresponde à realidade. Bem pelo contrário. Não há qualquer referência explícita à comunicação matemática e verbos que traduzam ações relacionadas com esta atividade (por exemplo, explicar, argumentar, debater, questionar…) são praticamente inexistentes. Ora há inúmeros estudos desenvolvidos, nomeadamente no âmbito da Educação, Psicologia, Filosofia, que mostram que a prática de comunicar e discutir ideias são atividades essenciais à estruturação do pensamento e, por isso mesmo, fundamentais à compreensão.

Simultaneamente, a análise dos referidos objetivos e descritores revela uma perspetiva fortemente redutora do papel e lugar da resolução de problemas e do raciocínio matemático quer se observem estas duas capacidades à luz da natureza da Matemática ou à luz do que a investigação diz sobre os processos de aprendizagem da Matemática.

Com efeito, a análise do vasto conjunto de descritores apresentados revela que a resolução de problemas tem um lugar claramente secundário. Por exemplo, no 1.º ano de escolaridade, são apresentados 31 descritores no âmbito do tema “Geometria e Medida” sem que haja um único relacionado com a resolução de problemas. Também no 7.º ano, são apresentados 18 descritores para os objetivos “Definir Funções” e “Operar com funções” sem que exista qualquer referência à resolução de problemas. A modelação matemática presente no propósito geral de ensino do Programa de Matemática para a Álgebra está totalmente ausente nesta proposta de metas curriculares. Além disso, os problemas surgem, exclusivamente, numa ótica de aplicação de conceitos e procedimentos. Um exemplo paradigmático desta situação encontra-se no 1.º ciclo e no tema “Números e Operações”. Aqui os problemas surgem, apenas, após o ensino direto das operações aritméticas e a tipologia de classificação de problemas a que recorreram os autores da proposta de metas baseia-se, meramente, no número “de passos” usados, isto é, no número de operações efetuadas. Ora os problemas, em Matemática, não são apenas um campo de aplicação de conhecimentos. Têm muitas outras funções entre as quais, as de justificação, motivação, recreação e veículo. Todas elas são importantes, uma ideia bem destacada por Ian Stewart quando afirma que “os problemas são a força motriz na matemática”. A perspetiva restrita veiculada pelas metas curriculares sobre a resolução de problemas é limitadora do desenvolvimento, pelos alunos, da capacidade de elaborar estratégias para lidar com situações desconhecidas e, por esta via, da sua maturidade intelectual.

Depois da nota introdutória, na proposta de metas curriculares há apenas cinco referências explícitas ao raciocínio. Uma destaca a necessidade de prevenir raciocínios circulares (p. 75). As restantes estão exclusivamente associadas ao raciocínio dedutivo (pp. 21, 45, 49, 66). No 3.º ciclo do ensino básico, começam a surgir descritores cuja redação inclui as palavras “provar” ou “demonstrar”, dois aspetos importantes do raciocínio matemático mas que remetem, também, para o raciocínio dedutivo.

Contudo, na atividade matemática não há apenas o raciocínio dedutivo. Porquê limitar a experiência matemática dos alunos à aprendizagem deste tipo de raciocínio? Sem negar a importância da dedução, excluir a possibilidade dos alunos aprenderem, também, a raciocinar indutivamente ou por analogia (por exemplo) é eliminar a possibilidade de aprenderem a conjeturar e de entenderem o significado e papel dos contra-exemplos em Matemática. Como a investigação realizada quer a nível nacional quer internacional mostra, se os alunos não se envolverem em atividades que requeiram a formulação e teste de conjecturas, se não forem confrontados com tarefas matemáticas cuja resolução apela ao raciocínio plausível, muito dificilmente entenderão a necessidade de demonstrar ou atribuirão importância a esta atividade, ou seja, dificilmente aprenderão a demonstrar. O raciocínio matemático está intimamente associado a um hábito de pensamento relacionado com a compreensão do porquê das “coisas”. Sem o entendimento deste porquê até se pode “saber fazer” (uma equação, uma contagem, um algoritmo) mas não se conseguirá usar o conhecimento de forma criteriosa, crítica e flexível. Dificilmente se será bem sucedido em atividades que vão para além do trivial ou da rotina. Compreender porque se faz o que se faz remete, inevitavelmente, para a atividade de justificar que, por conseguinte, deve ter um lugar de destaque na aprendizagem dos alunos desde o início da sua escolaridade. Ora, nas metas curriculares, parece que esta atividade apenas começa a ser verdadeiramente importante no 3.º ciclo do ensino básico. De facto, é apenas neste ciclo que os autores da proposta de metas incluem o verbo “justificar” no conjunto dos que enunciam nos parágrafos intitulados “Leitura das metas curriculares”. No ciclo anterior a este, a actividade de justificar está subordinada à acção de “Reconhecer” o que não é inteligível tanto mais que a justificação de enunciados evocando propriedades já conhecidas (significado atribuído ao verbo justificar no 3.º ciclo) é uma atividade desejável e acessível aos alunos do 2.º ciclo. No 1.º ciclo não há qualquer referência à necessidade dos alunos justificarem ideias matemáticas, o que conduzirá à uma significativa diminuição da qualidade das suas aprendizagens quer neste ciclo quer em estudos futuros.

 

A concluir

Pela análise apresentada, a SPIEM reitera a necessidade de o MEC retirar a proposta de metas curriculares em discussão. Note-se ainda que estão em fase de experimentação outras metas de aprendizagem sobre as quais não existe qualquer avaliação, pese embora a sua sintonia com o Programa de Matemática em vigor no ensino básico. Assim, a SPIEM recomenda que o Ministério da Educação e da Ciência, em vez de propor “novas” metas curriculares, canalize os seus esforços e investimentos para uma ação cientificamente sustentada e que permita que os alunos portugueses continuem a melhorar as suas aprendizagens matemáticas.

 

Sociedade Portuguesa de Investigação em Educação Matemática

Lisboa, 23 de julho de 2012